“Obsessão  –  Preocupação  com  determinada  ideia,  que  domina doentiamente o espírito, e resultante ou não de sentimentos recalcados.” (Dicionário Aurélio). 
Exemplo:
-- Será que eu apaguei a luz do banheiro? -- pergunta ele.
-- Eu é que vou saber? -- responde ela.
-- Tenho certeza que apaguei. -- Então apagou. Vamos dormir.
-- Devo  ter  apagado.  Sou  eu  quem  sai  apagando  as  luzes  nessa casa. Luzes que você sempre deixa acesas. Apaga quem paga.
--  Agora  quer  pôr  a  culpa  em  mim  --  ela  suspira  fundo, completamente  acordada;  --  Esquece  de  apagar  a  luz  do  banheiro  e depois reclama que estamos gastando muita luz.
-- Tenho certeza que apaguei -- diz ele para si mesmo, sentando-se na cama pensativo.
-- Você disse que tinha certeza. Agora já está no quase. O melhor é ir ver de uma vez.
Ele  se  ergue  a  custo,  entre  resmungos,  e  lá  vai  arrastando  as pernas até o banheiro no fim do corredor. Em pouco está de volta:
-- Eu sabia que tinha apagado.
Deita-se, desliga a luz de cabeceira, mas não dorme imediatamente. A mulher dá com ele semi-erguido, apoiando-se nos cotovelos:
-- Que foi agora?
-- A luz do banheiro. Será que eu deixei acesa, quando fui olhar se tinha apagado?
E vai olhar outra vez.
Resultante  ou não de sentimentos recalcados, é sem dúvida  uma ideia  que  domina  doentiamente  o  seu  espírito,  capaz  de  fazê-lo  ir  uma terceira vez no banheiro, e outra mais, para nada, senão verificar se  da última  não  teria  deixado  a  luz  acesa.  Poderá,  mesmo,  ficar  nisso  até  o amanhecer. 
Falei  em  obsessão,  porque  ultimamente  ando  um  pouco preocupado com meu próprio caso. Não sei se chega a constituir também uma ideia que domina doentiamente meu espírito – mas quer dizer, por exemplo, da vacilação quando escrevo a própria palavra obsessão, será com s ou c? Embora tenha absoluta certeza de que é com s, acabo indo olhar  no  dicionário  pela  milésima  vez.  E  resta  sempre  a  incerteza  em relação à última sílaba, com dois s ou com c cedilha. Para tirar qualquer sombra de dúvida, tenho que olhar de novo.
Não  chego  a  ter  aquelas  obsessões  que  atormentavam  os personagens  de  Dostoievski,  como  Stravoguine,  que  só  pensava  em puxar o nariz do governador (acabou puxando). Nunca me ocorreu puxar o nariz de ninguém. Minhas obsessões são de outra natureza.
Pode ser  que  não se  chame propriamente de obsessão o que me aconteceu naquela livraria, por exemplo.
Comecei  por  cometer  a  imprudência  sempre  temida:  entrar  em livraria com um livro debaixo do braço. O pior é  que se tratava de livro novo, adquirido havia pouco noutra livraria.
Mal entrei, um vendedor se aproximou:
-- Às suas ordens.
Murmurei  confusamente umas  palavras cujo  significado  pretendia ser o de que eu estava só querendo dar uma olhada.
-- Algum livro em especial? – ele insistiu ainda.
Diante  de  meu  silêncio,  acabou  desistindo,  e  se  afastou,  já desinteressado  em  mim.  Mas  não  me  senti  à  vontade,  pois  outro vendedor,  de  longe,  passara  a  acompanhar-me  os  movimentos  com  os olhos  distraídos.  Certamente  fingia  nada  perceber,  o  finório,  pois  sem dúvida já havia visto o livro debaixo do meu braço e aguardava apenas que  eu  saísse  da  loja  para  me  apanhar  em  flagrante.  Parecia,  mesmo, haver para isso escolhido uma posição estratégica junto à porta.
O temor de ser tomado por ladrão de livro: esta é minha obsessão. Ou  estaria  exagerando?  Pois  o  vendedor  parecia  haver  passado  da suspeita  a  uma  ostensiva  vigilância.  Julguei  ver  até  certo  ar  irônico  na maneira casual com que ele veio se aproximando: como quem diz: deixa estar que eu já te pego.
Para  disfarçar,  voltei  a  olhar  a  estante,  dando-lhe  as  costas. Descobri,  fascinado,  que  me  detivera  justamente  em  frente  a  uma prateleira na qual se alinhavam vários exemplares da obra que eu havia comprado – era um lançamento recente, que vinha fazendo sucesso. Pus-me a folhear o meu com naturalidade.
-- Quer que eu embrulhe?
O  tom  gentil  de  sua  voz  era  melífluo,  mal  encobrindo  a  malícia. Como  então  ele  queria  me  apanhar  com  a  boca  na  botija!  Por  um momento vacilei. Inclinado a aceitar o oferecimento, era a solução mais fácil: deixava que embrulhasse o livro, pagava de novo por ele e saía dali embrulhado mas livre daquela aflição.
Era demais para o meu amor-próprio. Eu não poderia me submeter àquela  humilhação  –  e  àquele  prejuízo.  Seria  tão  mais  simples  dizer candidamente:
-- O senhor  está enganado: este livro já é  meu, foi comprado por mim mesmo ali na outra livraria.
Provavelmente  haveria  no  diabo  do  livro  um  carimbo  ou  outra marca  particular  com  as  livrarias  costumam  identificar  sua  mercadoria. Em vez disse, disfarcei a ansiedade num falso bocejo de tédio:
-- Muito obrigado, estava apenas olhando...
E num gesto o mais descontraído possível, enfiei o volume entre os demais  exemplares  na  prateleira.  Depois  olhei  ao  redor  as  mesas  e estantes abarrotadas de livro, com ar displicente de quem diz “não há o que ler” e fui saindo, sob o olhar indiferente do vendedor.
(SABINO, Fernando. In: O gato sou eu, 12. ed. Rio de Janeiro, Record, 1984, p. 70)