Redação
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A PALAVRA (Rubem Braga)
Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito - como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento - e depois esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven - e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
Alguma coisa que eu disse distraído - talvez palavras de algum poeta antigo - foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo, iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.
Em um momento tão estressante como a prova de vestibular, ler um texto desses pode fazer o candidato sorrir um pouco.
E as questões relacionadas não estavam difíceis.
Questão 10 – Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
O ofício a que Rubem Braga se refere é o seu próprio, o de escritor. Para caracterizá-lo, além do adjetivo “imprudente”, ele recorre a uma metáfora: “viver em voz alta”.
O sentido dessa metáfora, relativa ao ofício de escrever, pode ser entendido como:
(A) Superar conceitos antigos
(B) Prestar atenção aos leitores
(C) Criticar prováveis interlocutores
(D) Tornar públicos seus pensamentos
Essa estava moleza!! Se o autor é escritor, seus pensamentos se materializam na escrita, e as pessoas que o leem podem acabar, vez ou outra, sendo feridas por conta de alguma coisa que ele tenha divulgado em seus textos. Ele percebe que isso acontece quando se depara com alguns olhares atravessados no dia-a-dia. Letra D.
Questão 11 – Alguma coisa que eu disse distraído – talvez palavras de algum poeta antigo – foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém.
O cronista revela que sua fala ou escrita pode conter algo escrito por “algum poeta antigo”. Ao fazer essa revelação, o cronista se refere ao seguinte recurso:
(A) Polissemia
(B) Pressuposição
(C) Exemplificação
(D) Intertextualidade
Intertextualidade é quando fazemos conexões entre textos. Por exemplo, todo mundo que vê o quadro abaixo, do Botero, (aliás, vale a pena conferir toda a sua obra... ele é maravilhoso!!!) acha certa graça. E isso acontece porque a pessoa faz a conexão com o texto de Da Vinci. Isso se chama intertextualidade.
Há uma música do Chico Buarque, chamada Bom Conselho, em que também ocorrem essas pontes entre textos. Veja:
“Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir
Que a dor não passa.
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado
Quem espera nunca alcança”.
Acho que todo mundo quando lê esse texto se lembra dos ditados populares. Isso também é intertextualidade.
Na verdade, muito do que dizemos no dia-a-dia pode estar conectado a alguma coisa que lemos ou ouvimos em algum tempo. Ó: intertextualidade.
Então, quando o cronista diz que pode ter dito palavras de algum poeta, o cronista faz referência à intertextualidade.
Pronto! Letra D.
Questão 12 – O episódio do canário traz uma contribuição importante para o sentido do texto, ao estabelecer uma analogia entre a palavra do escritor e a música assobiada pela amiga.
A inserção desse episódio no texto reforça a seguinte ideia:
(A) A intolerância leva o artista ao isolamento
(B) A arte atinge as pessoas de modo inesperado
(C) A solidão é remediada com soluções artísticas
(D) A profissão envolve o artista em conflitos desnecessários
Assim como o assobio da mulher, sem nenhum propósito, fez com que o canário cantasse, as palavras do escritor, também sem nenhum propósito, podem encantar ou desencantar alguém. Ou seja, a arte atinge as pessoas de modo inesperado. Letra B!
Tranquila também!
Questão 13 – Toda a indagação do cronista acerca da palavra se baseia na diferença entre a importância que ela pode ter, por um lado, para quem escreve e, por outro, para quem a lê.
O par de vocábulos que melhor exemplifica essa diferença no texto é:
(A) Esqueci (l.9) – feri (l.1)
(B) Ofício (l.3) – consolo (l.4)
(C) Espontânea (l. 8) – secreta (l. 16)
(D) Reconciliar (l.5) – despertar (l.18)
Para os preguiçosos, uma questão como essa pode perturbar um pouco. É preciso analisar todas as opções para identificar o par que representa a importância da palavra para quem escreve e para quem lê.
A letra A é a que faz sentido. Sabe aquela história de que quem bate esquece, mas quem apanha não? (Acabei fazendo conexão entre dois textos: intertextualidade de novo!). Pois é... o par “esquecer – ferir” acaba se relacionando a essa ideia. Às vezes o escritor diz alguma coisa que considera sem a mínima importância, uma palavra que diz distraído e depois até esquece. Já quem recebe tal palavra pode ser tocado por ela, de forma positiva ou negativa. A palavra pode fazer a pessoa se reconciliar consigo mesma ou pode ferir.
Esse é o raciocínio!! Mas para chegar a ele eu li várias vezes todas as opções apresentadas.
Questão 14 – Às vezes, também (l.4)
Ao estabelecer a coesão entre os dois primeiros parágrafos, a palavra “também”, nesse contexto, expressa determinado sentido.
Considerando esse sentido, “também” poderia ser substituído pela seguinte expressão:
(A) Desse modo
(B) Por outro lado
(C) Por conseguinte
(D) Por consequência
Errou essa questão quem não voltou ao texto para fazer a análise. Sem uma releitura, a tendência é marcar a letra A – desse modo -, pois é a expressão mais parecida com “também”. Acho até que essa opção não estava na letra A à toa. A emboscada serviu para os apressados.
Analisando os parágrafos: no primeiro, o tema são as pessoas que são feridas com as palavras do autor. No segundo parágrafo, por outro lado, o tema são as pessoas que acabaram se reconciliando consigo mesmas devido às palavras do autor.
O “também”, nesse caso, tem o sentido de “por outro lado”, “ao contrário”. Letra B!
Questão 15 – O final do texto revela uma reflexão do escritor acerca do poder da sua escrita, a partir da menção a uma princesa e a um povo.
Essa menção sugere, principalmente, que o escritor deseja que suas palavras tenham o poder de:
(A) Desfazer as ilusões antigas
(B) Permear as classes sociais
(C) Ajudar as pessoas discriminadas
(D) Abolir as hierarquias tradicionais
Essa foi a questão que mais me deu trabalho. Fiquei muito em dúvida entre as letras A e B. Explico:
Apesar de haver a referência ao sorriso da princesa deixando o povo mais feliz, o que leva à marcação da letra B (gabarito oficial), pensei em mais uma hipótese.
Eu entendo também que a princesa sorrindo, e toda a felicidade do seu povo, representam o encantamento de uma só pessoa, como se alguém passasse a ser totalmente transformado por uma palavra. Para mim, o último parágrafo pode sugerir que o escritor deseja que suas palavras tenham o poder de transformar o dia, a vida de alguém, desfazendo antigas ilusões.
Bom, o gabarito não vai mudar. Isso já foi divulgado no site. A resposta é a B: o leitor deseja permear as classes sociais com as suas palavras.
E aqui termina o momento UERJ!
Espero que os comentários tenham ajudado.
Até!!
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