Redação
DUAS PÉROLAS DE BOFF
Papa Francisco e a despaganização do papado - Leonardo Boff Quarta-feira, 16 de outubro de 2013 - 14h09minpor ADITAL
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As inovações nos hábitos e nos discursos do Papa Francisco, abriram aguda crise nos arraiais dos conservadores que seguiam estritamente as diretrizes dos dois papas anteriores. Intolerável para eles foi o fato de ter recebido em audiência privada um dos inauguradores da "condenada" Teologia da Libertação, o peruano Gustavo Gutiérrez. Se sentem aturdidos com a sinceridade do Papa ao reconhecer erros na Igreja e em si mesmo, ao denunciar o carreirismo de muitos prelados, chamando até de "lepra" ao espírito cortesão e adulador de muitos em poder, os assim chamados "vaticanocêntricos". O que realmente os escandaliza é a inversão que fez ao colocar em primeiro lugar, o amor, a misericórdia, a ternura, o diálogo com a modernidade e a tolerância para com as pessoas mesmo divorciadas, homoafetivas e não-crentes e só a seguir as doutrinas e disciplinas eclesiásticas.
Já se fazem ouvir vozes dos mais radicais que pedem, para o "bem da Igreja" (a deles obviamente) orações nesse teor: "Senhor, ilumine-o ou elimine-o". A eliminação de papas incômodos não é raridade na longa história do papado. Houve uma época entre os anos 900 e 1000, chamada de a "idade pornocrática" do papado na qual quase todos os papas foram envenenados ou assassinados.
As críticas mais frequentes que circulam nas redes sociais destes grupos, historicamente velhistas e atrasados, vão na linha de acusar o atual Papa de estar dessacralizando a figura do papado até banalizando-o e secularizando-o. Na verdade, são ignorantes da história, reféns de uma tradição secular que pouco tem a ver com o Jesus histórico e com o estilo de vida dos Apóstolos. Mas tem tudo a ver com a lenta paganização e mundanização da Igreja no estilo dos imperadores romanos pagãos e dos príncipes renascentistas, muitos deles cardeais.
As portas para este processo foram abertas já com o imperador Constantino (274-337) que reconheceu o cristianismo e com Teodósio (379-395) que o oficializou como a única religião permitida no Império. Com a decadência do sistema imperial criaram-se as condições para que os bispos, especialmente, o de Roma, assumissem funções de ordem e de mando. Isso ocorreu de forma clara com o Papa Leão I, o Grande (440-461), feito prefeito de Roma, para enfrentar a invasão dos hunos. Foi o primeiro a usar o nome de Papa, antes reservado só aos Imperadores. Ganhou mais força com o Papa Gregório, o Grande (540-604), também proclamado prefeito de Roma, culminando mais tarde com Gregório VII (1021-1085) que se arrogou o absoluto poder no campo religioso e no secular: talvez a maior revolução no campo da eclesiologia.
Os atuais hábitos imperiais, principescos e cortesãos da Hierarquia, dos Cardeais e dos Papas se remetem especialmente a Papa Silvestre (334-335). No seu tempo se criou uma falsificação, chamada de "Doação de Constantino", com o objetivo de fortalecer o poder papal. Segundo ela, o Imperador Constantino teria doado ao Papa a cidade de Roma e a parte ocidental do Império. Incluída nessa "doação", desmascarada como falsa pelo Cardeal Nicolau de Cusa (1400-1460) estava o uso das insígnias e da indumentária imperial (a púrpura), o título de Papa, o báculo dourado, a cobertura dos ombros toda revestida de arminho e orlada com seda, a formação da corte e a residência em palácios.
Aqui está a origem dos atuais hábitos principescos e cortesãos da Cúria romana, da Hierarquia eclesiástica, dos Cardeais e especialmente do Papa. Sua origem é o estilo pagão dos imperadores romanos e a suntuosidade dos príncipes renascentistas. Houve, pois, um processo de paganização e de mundanização da igreja como instituição hierárquica.
Os que querem a volta à tradição ritual que cerca a figura do Papa sequer tem consciência deste processo historicamente datado. Insistem na volta de algo que não passa pelo crivo dos valores evangélicos e da prática de Jesus.
Que está fazendo o Papa Francisco? Está restituindo ao papado e à toda a Hierarquia seu estilo verdadeiro, ligado à Tradição de Jesus e dos Apóstolos. Na realidade, está voltando à tradição mais antiga, operando uma despaganização do papado dentro do espírito evangélico, vivido tão emblematicamente por seu inspirador São Francisco de Assis.
A autêntica Tradição tá no lado do Papa Francisco. Os tradicionalistas são apenas tradicionalistas e não tradicionais. Estão mais próximos do palácio de Herodes e de César Augusto do q da gruta de Belém e da casa do artesão de Nazaré. Contra eles está a prática de Jesus e suas palavras sobre o despojamento, a simplicidade, a humildade e o poder como serviço e não como fazem os príncipes pagãos e "os grandes que subjugam e dominam: convosco não deve ser assim; o maior seja como o menor e quem manda, como quem serve" (Lc 22, 26).
O Papa Francisco fala a partir desta originária e mais antiga Tradição, a de Jesus e dos Apóstolos. Por isso, desestabiliza os conservadores que ficaram sem argumentos.
Leonardo Boff.
O cristianismo em poucas palavras - Leonardo Boff/
Terça-feira, 24 de setembro de 2013
Não são poucos, cristãos ou não, os que perguntam: o que o cristianismo pretende? Cristo, de onde vem "cristianismo”, o que pretendeu quando passou entre nós, há mais de dois mil anos?
A resposta deve, por um momento, esquecer todo o aparato doutrinário criado ao longo da história e ir diretamente ao essencial. E esse essencial deve ser expressado de forma que pessoas simples possam entendê-lo. Jesus não começou anunciando a si mesmo ou à Igreja. Anunciou o Reino de Deus, que significa o sonho de uma revolução absoluta, que se propõe transformar todas as relações que se encontram deturpadas, no pessoal, no social, no cósmico e, especialmente, com referência a Deus. Esse reino começa quando as pessoas aderem a esse anúncio esperançador e assumem a ética do Reino: o amor incondicional, a misericórdia, a fraternidade sem fronteiras, a aceitação humilde de Deus vivido como Pai de infinita bondade.
Além de proclamar o Reino de Deus, qual é a intenção original de Jesus? Os apóstolos fizeram essa pergunta diretamente a Jesus, usando um rodeio linguístico típico daquele tempo: "Senhor, ensina-nos a rezar" (Lucas 11,1). Isso é o mesmo que pedir: "Dá-nos um resume de tua mensagem; qual é a tua proposta?" Jesus responde com o Pai Nosso. É a ipsissima vox Jesu: a palavra que, sem dúvida, saiu da boca do Jesus histórico.
Nessa oração está o mínimo do mínimo da mensagem de Jesus: Deus-Abba e seu reino, o ser humano e suas necessidades. Mais resumidamente: trata-se do Pai nosso e do pão nosso no arco do sonho do Reino de Deus. Aqui, encontram-se os dois movimentos: um rumo ao céu, e aí encontra a Deus como Abba, Pai nosso querido e seu projeto de resgate de toda a criação (o Reino); outro rumo à terra; e aí encontra o pão nosso sem o qual não podemos viver. Observe-se que não se diz "meu Pai", mas "Pai nosso"; nem "meu pão", mas "pão nosso de cada dia".
Somente podemos dizer amém se unimos os dois polos: o Pai com o pão. O cristianismo se realiza nessa dialética: anunciar um Deus bom porque é Pai querido que tem um projeto de total libertação e, ao mesmo tempo, e à luz dessa experiência, construir coletivamente o pão como meio de vida para todos.
Conhecemos a tragédia que aconteceu com Jesus. O Reino foi rechaçado e seu anunciador executado na cruz. Porém, Deus tomou partido por Jesus: o resuscitou. A ressurreição não é a reanimação de um cadáver; mas, a emergência do "novo Adão" (I Coríntios 15,45). A ressurreição é a realização do sonho do Reino na pessoa de Jesus como antecipação do que vai acontecer com todos e com o universo inteiro.
A execução de Jesus e sua ressurreição abriram um espaço para que surgissem o movimento de Jesus, as primeiras comunidades em âmbito familiar e local e, por fim, a Igreja como comunidade de fieis e comunidade de comunidades.
Cristianismo. O mínimo do mínimo recolhe o que significou o cristianismo na história, em seus momentos de sombras e de luzes, até chegar ao dia de hoje, com o desafio de encontrar seu lugar no processo de mundialização da humanidade. Esta descobre-se vivendo em uma única Casa Comum, o planeta Terra, agora gravemente ameaçado por uma crise ecológica generalizada, que pode pôr em risco o futuro de nossa civilização, e, inclusive, a sobrevivência da espécie humana.
O cristianismo pode contribuir com elementos salvadores porque Deus, segundo as Escrituras judaico-cristãs é "o soberano amante da vida" (Sabedoria 11,24) e não permitirá que a vida e o mundo, assumidos pelo Verbo, desapareçam da história.
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