MEMORIAL DO CONVENTO
Redação

MEMORIAL DO CONVENTO


PELOS ESCANINHOS DE MEMORIAL DO CONVENTO: REALIDADE & FICÇÃO[1]

Itana Leão, Aquilino Júnior,
Carmem Cristina, Gustavo Haun[2]

RESUMO

Em Memorial do Convento, o escritor português José Saramago realiza uma construção de uma narrativa baseada no cenário da história do império português, no reinado de Don João onde, a partir de personagens e fatos históricos, Saramago criou seu texto ficcional. Os textos documentais são correspondentes a Memorial do Convento no que se refere à construção do convento de Mafra, bem como as motivações do rei em construí-lo: ele resolve criar um imponente convento em função de uma promessa religiosa que o daria um herdeiro. Os personagens que compõem este romance nos comovem pela simplicidade e nos desperta a necessidade de repensar os acontecimentos e as figuras históricas à luz de uma nova realidade criada no presente e pressentida no futuro. Diante da obra na qual está sendo analisada julgamos que a escrita persegue uma preocupação com o ser humano, a sua miséria e a sua luta, as injustiças e os seus anseios, a sua grandeza e os seus limites.

Palavras-chave: literatura portuguesa, realidade, ficção, história, convento.

1. INTRODUÇÃO

José Saramago, escritor português que em 1969 filiou-se ao Partido Comunista devido aos acontecimentos políticos em novembro de 1975, em Portugal, abandonou os jornais e passou a ganhar a vida como tradutor de textos. Somente a partir do lançamento de “Memorial do Convento”, em 1982, é que passou a viver única e exclusivamente de literatura.
A partir de 1992, passou a morar em Lanzarote, ilha do arquipélago das Canárias; sua obra compreende: contos, romances, poesia, teatro e muitos ensaios. Um autodidata, José Saramago é extraordinariamente um fenômeno da literatura.
Não é difícil localizar a inspiração do real na obra Memorial do Convento já que o cenário da história é o império português no reinado de Don João, ou seja, a partir de personagens e fatos históricos Saramago cria seu texto ficcional.
Memorial do Convento é o romance que o tornou célebre, é um texto multifacetado e plurissignificativo que tem ao mesmo tempo uma perspectiva histórica e social, a inteligência e a riqueza de imaginação do escritor são expressas na obra de forma intensa e reveladora. Buscamos neste artigo localizar em Memorial do Convento as relações entre o fictício e o imaginário propostas por Iser. Contudo, uma das questões presentes nessa novela é a fronteira entre a história e a ficção. Saramago em seu argumento traduz-se numa estratégia narrativa vinculada com o plano da história, com o plano da ficção da história e com o plano do fantástico, que funcionam através da oposição ao mundo retratado como elemento fundamental.
Enfim, a realidade histórica encontra-se enleada nas teias da ficção e mais claramente no surreal, quando os fatos históricos relatados pelo autor são cruzados com elementos meta-empíricos possibilitando ao homem a capacidade de penetrar no interior dos humanos.

2. A AUTO-INDICAÇÃO E A PASSAROLA

Buscamos, aqui, localizar em Memorial do Convento elementos que representem as relações entre o fictício e o imaginário propostas por Iser. Para tal, analisaremos como opção de estudo a máquina de voar do Padre Bartolomeu. Na obra, ao mesmo tempo em que o texto relata a construção do convento em Mafra, outra trama se desenrola com os personagens padre Bartolomeu, Baltasar Sete-Sóis e Blimunda, que, entre outras ações, estão empenhados em construir uma máquina de voar, projetada pelo padre.

Então é isso, e o padre Bartolomeu Lourenço respondeu, Há de ser isto, e, abrindo uma arca, tirou um papel que desenrolou, onde se via o desenho de uma ave, a passarola seria. isso era Baltasar capaz de reconhecer, e porque à vista era o desenho de um pássaro, acreditou que todos aqueles materiais, juntos e ordenados nos lugares competentes, seriam capazes de voar...” (Saramago, 1982, p.58)

Segundo Iser, a ficção parte da tríade realidade-fictício-imáginário, constituindo assim o texto literário, contendo “elementos do real sem que se esgote na descrição desse real” (Iser, 1996:13). Desse modo, vemos como tais fatores se combinam no percurso do livro ora trabalhado. Elementos históricos e ocorrências do real ganham uma elaboração dotada da autonomia característica do texto ficcional.
Não é difícil localizar a inspiração do real na obra Memorial do Convento, já que o cenário da história é o império português no reinado de Dom João. Ou seja, a partir de personagens e fatos históricos o romance edifica sua trama. Os registros históricos correspondem ao romance no que tange à data e motivações da construção do convento. Ou seja, seria conseqüência de uma promessa feita pelo rei pela suposta graça de ter o próprio Deus concedido um herdeiro (um príncipe) ao rei Dom João V.
Sobre a noção do real, para construir o texto ficcional, o autor realiza o que Iser chama de ‘transgressões’. Tais transgressões seriam os “atos de ficção”: 1. A SELEÇÃO, transgressoras por serem escolhas a partir da realidade; 2. COMBINAÇÃO, a maneira como o autor dispõe sua seleção na obra, e por meio dela o texto ganha sua configuração de ficção; 3. E, finalmente, a AUTO-INDICAÇÃO, o ato em que se estabelece o acordo tácito com o leitor, ou ainda, em que se dá o ‘desnudamento” da ficção como tal. (Iser, 1996)
Através da Máquina de voar, a “passarola”, do padre Bartolomeu, o texto do romance Memorial... trafega por pelo menos duas instâncias presentes no texto: a metaficção historiográfica e o elemento fantástico de uma máquina de voar em pleno século dezoito. Ao mesmo tempo em que o texto nos oferece referências aos eventos históricos, ainda que desenvolvidos com autonomia na seqüência narrativa, diálogos e linguagem, temos um acontecimento desafiador à imaginação no sonho de voar do padre. O plano é compartilhado por Baltasar, que trabalha como operário nas obras do convento. Assim, temos durante o texto a presença de personagens históricos da corte portuguesa, bem como cenários e fatos como a construção do convento em Mafra e a relação da sociedade com a onipresença religiosa, entre o governo monárquico e o poder do clero. Compondo o conjunto, paralelamente estão os personagens Baltasar Sete-Sóis, Blimunda e o padre Bartolomeu, numa empreitada de construir uma máquina voadora.
Fortalecendo o teor místico e fantástico, vale ressaltar a busca dos personagens pelo modo como a passarola voaria. Inicialmente, o padre Bartolomeu supõe que faria a máquina voar movida por uma força cósmica que ele chama de “éter”, uma força que sustenta o sol e as estrelas no céu, e que poderia ser “capturada” por processos de alquimia. Após consultas com alquimistas na Holanda, o padre Bartolomeu chega à conclusão que o éter seria a própria vontade de Deus, vontade essa que todo ser humano também carrega dentro de si.
Blimunda, por sua vez, é dotada de uma capacidade de ver as pessoas por dentro, e assim, poderia ver a alma das pessoas. O “éter”, ou as “vontades” que cada ser humano traz consigo, poderiam então ser “capturadas” por Blimunda (p, 111):

“O padre persignou-se, Graças, Meu Deus, agora voarei. Tirou do alforje um frasco de vidro que tinha presa ao fundo, dentro, uma pastilha de âmbar amarelo, Este âmbar, também chamado electro, atrai o éter, andarás sempre com ele aonde andarem pessoas, em procissões, em autos de fé, aqui nas obras do convento, e quando vires que a nuvem vai sair de dentro delas, está sempre a suceder, aproximas o frasco aberto e a vontade entrará nele, E quando estiver cheio, Tem uma vontade dentro, já está cheio, mas esse é o indecifrável mistério das vontades, onde couber uma cabem milhões, o um é igual ao infinito.” (Saramago, 1982)

Podemos considerar ou localizar uma referência do real no texto já que a historiografia é correspondente a Memorial do Convento no que se refere à construção do convento de Mafra, bem como às motivações do Rei em construí-lo. No que tange à máquina de voar, as relações entre realidade e ficção são, no mínimo, mais sutis. Nem por isso, são menos marcantes, sendo, portanto, de possível identificação. Se a imaginária passarola tem a forma de um pássaro assim também se parecem os aviões que seriam inventados dois séculos depois da suposta máquina do padre Bartolomeu. E o que dizer do desejo do homem de voar que perpassa a história da humanidade? Tal desejo, podemos considerar, seria uma relação com um referente bastante coerente. Ou seja, na ocorrência da passarola temos diversos elementos do mundo dito “real”, selecionados, combinados e reinventados na transgressão e autonomia literárias.
O que torna a passarola um produto ficcional seria a liberdade transgressora interna do texto. É no resultado desses atos que temos o “desnudamento” da ficção como tal. No jogo de fatores colocados no texto é que a ficção se desnuda ao leitor. Como coloca Iser, a sutileza desta auto-indicação se estabelece como relacionamento dos campos de referência diz sobre a qualidade própria ao texto literário. O texto se revela como um produto fictício nas entrelinhas do jogo entre real e imaginário. Desse modo, estabelece-se o acordo com o leitor e a narrativa ganha seu valor próprio como conhecimento da realidade em toda sua condição e discurso. Como nos diz Lucente (1986), o texto literário tem importância “por causa e não apesar de seu status como mentira”. (p. 318)
A oposição oferecida em Memorial do Convento nos revela as proposições do absurdo com as quais nossa percepção é convidada a participar. Coloca-nos diante de uma construção que ilustra um poder (monarquia e clero) exercido com violência e empáfia, lado a lado com uma máquina movida por “vontades” extraídas do estômago das pessoas e engarrafadas num frasco de vidro. O plausível e o implausível misturam-se e confundem-se, como se um autorizasse o outro no campo da apreensão. A passarola voa, o convento é erguido. A imaginação e a referência desafiam o leitor a apreender o real no concreto, mas também na autonomia, entre a solidez e a liberdade.

3. CONCLUSÃO

A arte novelística multifacetada criada por José Saramago em Memorial do Convento, confere-lhe sua independência literária, invocando a tradição que, de algum modo, no contexto atual, pode ser considerada como radical. Na sua obra pode-se observar um conjunto de uma série de projetos, onde todos os fatos representam novas tentativas de se aproximarem da realidade distanciada. Entretanto, em Memorial do Convento, Saramago inseriu personagens reais e históricos vinculados ao real e ao fictício que, de certa forma, transpareceu-nos, ainda que simbolicamente, a indiferença da história oficial em relação aos inúmeros anônimos que construíram não só o convento de Mafra, como também a própria história de Portugal.
O objetivo da análise desse romance foi narrar e avaliar a estratégia que Saramago efetivamente fez ao conceder oportunidades aos excluídos da história, transformando assim o memorial dos esquecidos, proporcionando ao leitor a oportunidade de refletir sobre o passado histórico concedendo-lhe igualmente a possibilidade de rever um possível futuro.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é ficício. In: COSTA LIMA, Luiz. Teoria da Literatura em suas fontes. 2. ed. rev. E ampl. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.

In: HITCHEN, linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. 33º edição. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2007.




[1]Artigo realizado como conclusão da disciplina Literatura Portuguesa IV, sobre orientação da professora Reheniglei Rehem.
[2] Alunos graduandos do curso de Letras, UESC, Bahia, Brasil.



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