Redação
O quantum da língua
 
 
Como a física quântica pode explicar certos fatos da linguagem e as escolhas que compõem o processo de comunicação.
É muito comum entre os divulgadores da ciência o uso de metáforas  extraídas do dia a dia para ilustrar situações que não conseguimos  visualizar ou sobre as quais não temos nenhuma intuição, como é o caso  de fenômenos subatômicos ou relativos a outras dimensões que não as três  a que estamos acostumados. Até mesmo exemplos de língua e literatura  costumam ser utilizados para falar de física, astronomia, genética. Mas o  inverso também pode acontecer: fenômenos naturais podem igualmente  servir de modelos à explicação de fatos linguísticos, embora essa  prática seja menos usual, já que parte de um conhecimento não partilhado  pela maioria das pessoas. 
Não é incomum comparar línguas a  espécies biológicas e explicar sua evolução à maneira darwiniana (eu  mesmo já fiz isso algumas vezes), assim como é frequente descrever o  funcionamento da língua fazendo analogia com sistemas físicos como  máquinas, organismos e galáxias. Isso é possível porque, no fundo, a  linguagem, como tudo mais, é um fenômeno da natureza. Em que pese a  influência cultural (e termos desenvolvido cultura também decorre da  biologia de nosso cérebro), a aptidão linguística é inata e de natureza  biológica. Além disso, para desespero da maioria dos estudantes de  letras, a estrutura das línguas é pura matemática. 
Mas será que  até a física quântica pode ser invocada para explicar fatos de  linguagem? Como você já deve ter ouvido falar, essa teoria, que  apresenta inúmeras comprovações sobretudo no âmbito das partículas  elementares, propõe uma série de situações bizarras, paradoxais e  estapafúrdias para o senso comum, como o fato de uma partícula estar e  não estar em dado local ao mesmo tempo, ou a constatação de que o  próprio ato de observar a realidade pode modificá-la. 
Ramificações
Mas  sua previsão teórica mais chocante é a de que estamos vivendo  indefinidas vidas no plano quântico, e a cada instante temos um número  ilimitado de destinos a seguir. Para não fugir à regra e lançar mão de  uma metáfora, é como se estivéssemos andando por uma estrada e, a cada  passo, deparássemos com inúmeras ramificações; assim que déssemos o  primeiro passo em uma delas, novas ramificações se descortinariam, num  processo contínuo.
Cada vez que uma dessas infinitas  possibilidades se materializa (colapsa em realidade, como dizem os  especialistas), um novo leque de possibilidades se abre, bem como todos  os destinos alternativos deixam de existir. Eu poderia ter nascido  mulher, ou não ter nascido, ter me tornado engenheiro, casado com outra  pessoa, ou então permanecido solteiro. Mas a minha vida é a sucessão de  colapsos quânticos (escolhas ou circunstâncias) que me trouxeram até  aqui. Exatamente como um texto. 
Conforme o linguista suíço  Ferdinand de Saussure nos ensinou, o discurso é uma sucessão linear de  elementos (fonemas, morfemas, palavras) que ocupam, cada um, um lugar  exclusivo nessa linha (do tempo, no caso da fala, ou do caderno, no da  escrita), mas, para cada posição (ou sintagma, como se diz tecnicamente)  ocupada, há uma enorme lista (ou paradigma) de elementos que poderiam  ter sido escolhidos pelo falante ou redator, mas não o foram. Por  exemplo, a frase "O professor de matemática está corrigindo as provas"  poderia ser reformulada como "Meu professor de história está elaborando  as provas" ou "Nossa professora de português está lendo a apostila" ou  ainda "Meu gato de estimação está comendo a ração". Toda vez que  preencho uma casa vazia dessa estrutura sintática com uma palavra,  excluo todas as outras que poderiam ter entrado nesse lugar; ao mesmo  tempo, determino quais palavras podem ou não suceder à escolhida. Se  começo a frase com o artigo masculino, necessariamente o substantivo a  seguir deverá ser pi
nçado do paradigma dos masculinos, e todos os  substantivos femininos ficam excluídos da minha seleção. Se o sujeito  escolhido foi "meu gato de estimação", o predicado "está lendo a  apostila" torna-se inviável (exceto se minha intenção for produzir riso  por meio do nonsense). 
Escolhas
Enquanto  discursamos, estamos a todo instante fazendo escolhas: voz ativa ou  passiva, discurso direto ou indireto, artigo definido ou indefinido,  coordenação ou subordinação? Na fala, essas escolhas são instantâneas  (levamos no máximo algumas frações de segundo pensando antes de falar), e  é por isso que palavra dita não volta atrás. (Essa é a causa de muitos  lapsos, gafes e mal-entendidos, além dos erros gramaticais involuntários  que cometemos.) Na escrita, temos tempo para pensar antes de registrar  no papel ou na tela do computador as nossas escolhas, mas, mesmo assim,  cada opção feita conduz o texto a um destino diferente e cancela todos  os outros (infinitos) textos que poderíamos ter criado naquele momento e  que nunca conhecerão a luz da existência. 
Desfechos
Pense  em todas as estórias que Machado de Assis poderia ter inventado, todas  as ironias que poderia ter feito, todas as metáforas que poderia ter  empregado, mas nunca o fez (ou fez, mas jogou no lixo os rascunhos). Ou  em todos os outros desfechos que poderia ter dado às suas tramas. Pense  em todos os poemas que Drummond poderia ter concebido, talvez até mais  belos do que os que publicou! Como ele próprio disse, em Procura da  poesia, "Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas  que esperam ser escritos. [.] Ei-los sós e mudos, em estado de  dicionário. / Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. [.] Espera  que cada um se realize e consume [.] Não forces o poema a desprender-se  do limbo. / Não colhas no chão o poema que se perdeu. [.] Chega mais  perto e contempla as palavras. / Cada uma / tem mil faces secretas sob a  face neutra / e te pergunta, sem interesse pela resposta, / pobre ou  terrível, que lhe deres: / Trouxeste a chave?" Quanta poesia adormecida  há no universo quântico!
Aldo Bizzocchi é doutor em linguística pela USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume)
www.aldobizzocchi.com.br
  
BIZZOCHI, Aldo. O quantum da língua. Revista Lìngua Portuguesa. Disponível em: http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12478. Acesso em: 02/03/2012.
 
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